terça-feira, 26 de abril de 2016

Gaslighting: o filme que originou a doença


Você talvez não tenha visto o filme À Meia Luz (Gaslight, 1944), nem saiba pronunciar ou escrever essa palavra estranha. Mas saiba que ela mostra uma tática terrível de abuso psicológico. E que será retratada novamente no cinema, com o filme brasileiro "Uma Loucura de Mulher", previsto pra estrear em 2 de junho deste ano.

O filme


A peça teatral Gas Light de 1938 e suas adaptações para o cinema, lançadas em 1940 e 1944, motivaram a origem do termo por causa da manipulação psicológica sistemática utilizada pelo personagem principal contra uma vítima. A versão de 1944, dirigida por George Cukor e estrelada por Ingrid Bergman, é a mais famosa e lembrada pelos que adotaram o termo para designar uma mulher vítima de abuso psicológico do companheiro.

A bela e ingênua Paula Alquist (Ingrid Bergman) conhece o vivido Gregory Anton (Charles Boyer) e, após um curto namoro, se casam eles e passam duas semanas de lua-de-mel na Itália, onde Paula estudou ópera. Voltando a Londres, o casal se muda para a casa de uma tia de Paula, que foi uma famosa estrela de ópera e que também foi morta misteriosamente, sendo que Paula encontrou seu corpo quando ainda era criança. Entre os criados há Elizabeth Tompkins (Barbara Everest), que cozinhou para a família durante anos, e Nancy Oliver (Angel Lansbury), uma empregada que se insinuou para Gregory no minuto em que ele entrou na residência. Gregory logo ordena que a parte de cima da mansão seja lacrada e explica a Paula, que este ato é para o próprio bem dela, pois foi lá que sua tia foi assassinada. A partir de então Paula começa a perder coisas, sendo que Gregory fala para ela que seus lapsos de memória estão começando a perturbar a vida social deles. Ele revela a outros que a mãe de Paula morreu em um manicômio. Em uma reunião social onde Gregory reprova Paula pelo comportamento irregular dela, ambos são observados por Brian Cameron (Joseph Cotten), um detetive da Scotland Yard que se interessa pelo casal e começa a fazer investigações sobre o assassinato não solucionado da tia de Paula. Miss Thwaites (May Whitty), uma fofoqueira, dá informações sobre os hábitos do casal, o que aumenta as suspeitas de Cameron em relação a Gregory. Cameron tenta ver Paula em particular, mas é impedido várias vezes por Gregory, que está sempre alerta. Quando Cameron tem finalmente êxito, ela está à beira de um colapso nervoso. Paula explica que ela nota que a luz de gás nos quartos dela fica instável e diminuta, mas ninguém mais nota isto e ela acredita que é outra alucinação. Enquanto falam a luz de gás escurece e Cameron confirma isto. Ele então acha coisas perdidas por Paula, trancadas na escrivaninha do marido dela, juntamente com uma carta que Gregory aparentemente escreveu há vinte anos atrás para a tia assassinada de Paula.

O transtorno


O termo "Gaslighting" é utilizado desde 1960 para descrever a manipulação do sentido de realidade de alguém. A psicóloga Martha Stout afirma que sociopatas frequentemente usam táticas de gaslighting. Os sociopatas consistentemente transgridem os costumes sociais, descumprem as leis e exploram os outros, mas geralmente também são mentirosos, charmosos e convincentes ao negar as irregularidades que praticam. Assim, algumas pessoas que foram vítimas de sociopatas podem duvidar de suas próprias percepções. Jacobson e Gottman relatam que alguns cônjuges que cometem abusos físicos podem praticar gaslighting em seus parceiros, mesmo ao negar enfaticamente que tenham sido violentos.

O gaslighting geralmente acontece de forma muito gradual em um relacionamento; inclusive, as ações do parceiro abusivo podem parecer inofensivas em um primeiro momento. Com o passar do tempo, entretanto, esses padrões abusivos continuam e sua vítima pode acabar ficando confusa, ansiosa, isolada e deprimida, podendo perder toda a noção do que realmente está acontecendo. Então ela começa a se apoiar cada vez mais no parceiro abusivo para definir a realidade, o que cria uma situação muito difícil de se escapar.

Há várias técnicas diferentes que um parceiro abusivo pode usar:

Retenção: o parceiro abusivo finge não entender ou se recusa a ouvir. Ex.: "Eu não quero ouvir isso de novo" ou "Você está tentando me confundir".

Contestação: o parceiro abusivo questiona a memória da vítima, ainda quando ela se lembra das coisas corretamente. Ex.: "Você está errada, você nunca lembra das coisas direito".

Bloqueio/Desvio: o parceiro abusivo muda de assunto e/ou questiona os pensamentos da vítima. Ex.: "Essa é outra ideia maluca que seu [amigo/parente] te deu?" ou "Você está imaginando coisas".

Banalização: o parceiro abusivo faz as necessidades ou ou sentimentos da vítima parecerem sem importância. Ex.: "Você vai se zangar por algo tão bobo?" ou "Você é muito sensível".

Esquecimento/Negação: o parceiro abusivo finge ter esquecido o que realmente aconteceu ou nega coisas, como promessas feitas à vítima. Ex.: "Não faço ideia do que você está falando" ou "Você está só inventando coisas". 

O filme brasileiro


Aparentemente, é só mais uma das comédias que dominam o cinema nacional. Mas se assistir o trailer (divulgado hoje) com mais atenção, perceberá que ele quer conscientizar as pessoas sobre este assunto sério.

No filme, Mariana Ximenes vive a ex-bailarina Lúcia, que é casada com o deputado Gero (Bruno Garcia), um político com grandes ambições que faz a esposa se afastar um pouco de seus próprios sonhos. Após reagir à altura à cantada machista de um influente senador (Luiz Carlos Miele), Lúcia é taxada de louca por seu próprio marido. Com medo de ser internada, a mulher foge para o Rio de Janeiro com a ajuda de Dulce (Miá Mello), voltando a viver no apartamento do pai. Lá, ela encontra e faz amizade com a vizinha Rita (Guida Vianna), que ajuda Lúcia a recordar memórias sobre seu pai e se redescobrir, e reencontra Raposo (Sergio Guizé), seu primeiro namorado. Mas Gero vai atrás dela, disposto a tentar conquistar a mulher de volta para evitar um escândalo ainda maior.

Percebe-se claramente que Gero pratica gaslighting com Lúcia, preferindo taxá-la de louca e interná-la a se indispôr com o senador que pode ajudá-lo em suas pretensões políticas. E pretende ser mais um símbolo de empoderamento feminino ao mostrar uma mulher que se liberta das amarras impostas pelo marido para ser ela mesma e viver os seus sonhos. A comédia ajuda o brasileiro a absorver melhor o assunto, e ao mesmo tempo, a perceber e evitar este tipo de comportamento.

Como superar?


Para superar esse tipo de abuso, é importante começar a reconhecer os sinais e eventualmente aprender a confiar em si mesma de novo. De acordo com o autor e psicanalista Robin Stern, PhD, os sinais de que você está sendo vítima de gaslighting incluem:

Você duvida de si mesma constantemente.
Você se pergunta "Eu sou sensível demais?" várias vezes ao dia.
Você constantemente se sente confusa ou até mesmo maluca.
Você está sempre pedindo desculpas ao seu parceiro.
Você não entender por que, com tantas coisas aparentemente boas na sua vida, você não está mais feliz.
Você frequentemente cria desculpas para justificar o comportamento do seu parceiro para seus amigos e sua família (ou até para si mesma).
Você começa a esconder informações dos seus amigos e da sua família para que não tenha que explicá-las ou inventar desculpas.
Você sabe que algo está muito errado, mas nunca consegue expressar exatamente o que, nem para si mesma.
Você começa a mentir para evitar as distorções da realidade e ser posta para baixo.
Você tem dificuldade para tomar decisões fáceis.
Você sente que costumava ser uma pessoa muito diferente – mais confiante, mais divertida e mais relaxada.
Você se sente desesperançosa e desanimada.
Você sente que não consegue fazer nada certo.
Você se pergunta se é uma parceira "boa o suficiente".

Alguns homens tentam deslegitimar esse transtorno, dizendo que tudo não passa de "mimimi" das feministas. Mas o gaslighting é real e envolve tratamento psicológico para a vítima, além de uma boa distância que ela deve manter do abusador e de seus defensores.

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